sábado, julho 02, 2005

Formação portista em O Jogo (2/7/2005)

O dragão que ainda sorri, por José Manuel Ribeiro

Para um certo departamento do FC Porto, mesmo quando faltam os títulos e foge a SuperLiga é possível chegar em primeiro lugar através dos minutos a que Ivanildo, Paulo Machado ou até Bruno Gama tiveram direito na equipa principal. Um relacionamento lateral com o êxito que o perfil do novo treinador foi escolhido para potenciar. Entretanto, a Federação quer destruir o hall de entrada

Morria a última etapa da SuperLiga. O FC Porto agarrava-se a improbabilidades para acreditar no título e fugiam os sorrisos em toda a estrutura. Ou quase. Mais abaixo na hierarquia, dava-se por particularmente feliz alguém que tem por função ganhar nos detalhes, sejam eles o segundo lugar no campeonato de juniores ou uns minutos de atenção no plantel principal para um jogador transplantado dos bês. É preciso descer uns degraus para compreender como a ascenção de Ivanildo ao onze de Couceiro, por exemplo, pode remediar um título perdido. Nunca totalmente, porque, no FC Porto, a derrota na SuperLiga é sempre a derrota de todos, mas pelo menos em parte. Ivanildo, Paulo Machado e Bruno Gama fizeram deste um ano bom para o departamento de formação dos dragões, dirigido por Joaquim Pinheiro, coordenado por Ilídio Vale e, já agora, atormentado pela Federação Portuguesa de Futebol.

O anunciado desaparecimento das equipas B, para as quais não foi apresentado substituto concreto pelo promotor da ideia - a direcção da FPF -, põe em causa quem se deu bem com o sistema, salvo seja, e não há dúvida de que o FC Porto está à cabeça desse grupo. "Esta época, aconteceu que três jogadores estiveram de forma efectiva na principal equipa do clube. Isto torna-se mais relevante se repararmos que nos últimos anos foram muitos os nossos atletas que a integraram. Significa que o trabalho atinge permanentemente os objectivos, o que, a meu ver, é uma garantia de qualidade", defende Ilídio Vale. Os "objectivos" fazem mesmo o papel de centro magnético da conversa, porque foi por aí que a Federação tentou explicar a decisão de cortar a cabeça ao processo produtivo: as equipas B não cumprem os objectivos. "Um dado relevante", segue Ilídio Vale: "Conseguimos enquadrar jogadores num plantel campeão europeu e de uma qualidade extraordinária, correspondente ao máximo possível de rendimento colectivo a nível mundial". Hélder Postiga, Hugo Almeida, Ricardo Costa... Directamente dos bês do FC Porto para as convocatórias de Scolari. Sem passar na casa de partida, nem cumprir os "objectivos".

A chave é reaproximar

É tudo perfeito na formação do FC Porto? Não. Joaquim Pinheiro e Ilídio Vale admitem alguma falta de comunicação, durante uma parte da última época, entre o departamento e a equipa principal, "que é o barómetro do resto", lembra Pinheiro. Um campeonato a escorregar entre os dedos e três treinadores preocupados cada um deles com as dificuldades do momento afastaram o que Mourinho ajudara a aproximar. Não foi assim a época toda. "Essa lacuna existiu, eventualmente, talvez em metade do ano", calcula o coordenador, preocupado em desfazer a ideia de um conflito. "Toda a gente sabia o que fazer, os modelos continuam perfeitamente instituídos. Havia uma relação clara entre toda a gente, sendo que a referência era a equipa A". Ainda assim, terá sido a necessidade de promover a aproximação entre os dois sectores que levou Pinto da Costa a decidir-se por um técnico especialista na matéria, daí a escolha de Co Adriaanse, vocacionado pelo currículo para os temas da formação. Joaquim Pinheiro admite que sim: "O presidente e a administração da SAD fizeram a sua análise". Antes de contratado o técnico, Pinto da Costa "informou-se de todas as situações". "Adriaanse esteve onde esteve, fez o trabalho que fez e tudo isso pesou, com certeza, na decisão". Por mais palavras: esteve cinco anos no Ajax, como director do departamento de formação e recebeu aplausos pelo trabalho, que até lhe valeu o regresso como técnico principal umas épocas depois.

O que tem a ganhar o FC Porto com um treinador vocacionado? Responde-se a isso com outra pergunta pelo meio: porquê tantas contratações, se a formação funciona bem? Ilídio Vale recorda, antes de mais, que é possível ter jogadores valiosos nos bês ou nos juniores, mas não, no momento certo, para a posição específica que o técnico considera desfalcada. "Isso justifica uma procura no mercado. São dados perfeitamente razoáveis. O que me parece útil aperfeiçoar é, dentro do possível, a detecção daquelas que são as principais lacunas da equipa principal. Por exemplo, a previsível saída de um jogador vendável podia motivar, de forma atempada, a procura, nos escalões de formação, de um jogador direccionado para aquela necessidade específica, que seria trabalhado com esse fim."

Joaquim Pinheiro: "Nós sabemos que estamos na frente"

Qualquer conversa sobre formação, neste momento, começa ou termina obrigatoriamente num nome: Cristiano Ronaldo. Pode o êxito do departamento ser medido pelo quantidade de Ronaldos que se produz, digamos, em dez anos? "Claramente, não", responde Ilídio Vale, consciente de que esse não deixa de ser um critério de avaliação quanto mais não seja para as conversas de café. "Há jogadores de excepção e esses podem surgir no FC Porto, no Sporting ou em qualquer clube onde haja qualidade de trabalho. O nosso trabalho deve medir-se pela formação continuada e sistemática de bons jogadores. Significa solidez e constância". No Ajax, de acordo com parâmetros definidos por... Co Adriaanse, uma boa média é produzir dois ou três atletas para a equipa principal. "Nós estamos acima dessa média", defendem-se Joaquim Pinheiro e Ilídio Vale, ao mesmo tempo. O único senão que admitem é a pouca abertura à mediatização dos jogadores, se comparada com a de outros clubes. "O público pode não ter noção da qualidade do nosso trabalho, mas os nossos adversários reconhecem-na. Há-de chegar o momento de dar a conhecer o que fazemos, mas não é, nem deve ser, uma preocupação". Diz Joaquim Pinheiro: "Nós sabemos que, a nível nacional e, se calhar, a nível europeu, estamos na frente".

Intenção de acabar com os bês "é uma monstruosidade completa"

O departamento de formação do FC Porto revolta-se contra a intenção da FPF e pede explicações: quais são as provas de que as equipas secundárias não cumpriram os objectivos? Ilídio Vale deixa o aviso: sem as equipas B "haverá retrocesso ou, pelo menos, estagnação"
"É um espaço que faz falta", assume Joaquim Pinheiro, sem deixar de assumir também que a primeira luta com a Federação com os bês pelo meio manteve sempre a equipa secundária do FC Porto à beira da extinção que a FPF decidiu promover agora sozinha, a pretexto da alteração nos quadros competitivos, alegadamente por achar que os bês, para além de não terem cumprido os objectivos, criam desequilíbrios nas divisões em que participam. Antes deste desenvolvimento, a luta entre os clubes e a Federação era pela desbloqueamento da subida à Liga de Honra, sem a qual as melhores equipas B, como a do FC Porto, ficaram perdidas num limbo em que facilmente se esgotava a ambição, necessária ao crescimento dos jogadores. Para o director dos dragões, a FPF está a dar o golpe de misericórdia num projecto necessário que ela própria impediu de ser mais benéfico.
O erro é tremendo, sustenta Ilídio Vale. "Haverá um retrocesso ou pelo menos estagnação. Não tem de ser só este modelo, mas as equipas B podem funcionar como a chave de todo o processo de formação". As justificações federativas só agravam o quadro. "É ridículo que uma instituição como a FPF, que deve ter responsabilidades ao mais alto nível no que diz respeito ao futebol de formação, desde o primeiro momento tenha criado barreiras permanentes à evolução dos jovens, como essa regra de não poder subir de divisão, que é já de si um facto muito contestável, mas pior é argumentar que as equipas B não cumprem os objectivos para os quais foram criadas e que são factores de desequilíbrio nos campeonatos em que competem. É uma monstruosidade completa." A leviandade que os responsáveis do FC Porto detectam na dialéctica que rodeou a decisão assume, no discurso de Ilídio Vale, a forma de um desafio: "Não conseguem provar que os objectivos não são cumpridos, não têm possibilidade de provar, o que é gravíssimo numa instituição com tanta responsabilidade. As equipas B, mas particularmente a do meu clube, sempre cumpriram os objectivos que levaram à sua formação, independentemente dos condicionalismos impostos por quem não devia, designadamente a Federação Portuguesa de Futebol. É lamentável. Parece que o grande cancro dos níveis competitivos são as equipas B, o que é uma injustiça terrível."

Segredo dos bês não foi Gonzalo

Equipa principal e equipa B do FC Porto partilharam uma má entrada na época, mas não a morfologia dos planteis: Victor Fernandez começou com quatro pontas-de-lança; Domingos Paciência sem nenhum que o fosse verdadeiramente. A chegada do argentino Gonzalo, em Janeiro, serviu de catalizador à revolução, a que correspondeu uma série de vinte e muitos pontos consecutivos, enquanto se adensavam os problemas no plantel principal. A abundância é uma doença degenerativa? Ilídio Vale acha que não. "A minha visão é mais colectiva. Um elemento pode ajudar a que a equipa seja mais forte, mas na equipa B melhorou o nível qualitativo do jogo. O Gonzalo deu-nos uma grande ajuda, tornou possível outras variantes, mas a equipa também se tornou mais forte, mais sólida e utrapassou algumas deficiências. Não foi a contratação de um jogador: melhorou consideravelmente a qualidade de jogo da equipa."

Vice-campeão também é bom

Os bês deste ano terão seis juniores e três ou quatro seniores de primeiro ano. São menos do que na última época, também porque na última equipa de juniores a maioria dos jogadores eram do primeiro ano. Ainda assim, conseguiu o segundo lugar no campeonato nacional, o que, não sendo o desejável, vai servido de medalha ao departamento de formação, onde os títulos perdidos até se podem perdoar mas a falta de competitividade não. É por isso que, perante a constação de um só título conquistado nas duas últimas épocas (iniciados, este ano), Joaquim Pinheiro e Ilídio Vale exibem os quatro segundos lugares que lhe corresponderam. Só numa prova nacional o FC Porto ficou fora das duas primeiras posições e conseguiu ainda vencer torneios internacionais em todos os escalões.

Quatro vezes no terceiro lugar

Como se mede afinal, o êxito de uma equipa B, já que a FPF levanta a questão? Se for pela quantidade de jogadores formados pelo FC Porto que alinham na SuperLiga, o problema é a quantidade de papel disponível, porque praticamente não há lá plantel sem pelo menos um. Se for pelo êxito na II Divisão B, a conclusão de que o sexto lugar do FC Porto esta época foi o pior resultado desde o início do projecto também deve arrumar o assunto. Os bês azuis e brancos foram quatro vezes terceiros classificados e na época restante ficaram-se pelo quarto posto, o que significa que, se dequilibraram o campeonato, como sustenta a Federação, fizeram-no pelo menos ganhando muitas vezes.

Técnicos sobem com as equipas

Para que se faça uma ideia: o departamento de formação do FC Porto, que se estende das escolas aos bês e inclui futebol de sete para os mais pequenos, aloja 27 técnicos, já incluindo o coordenador. A partir desta época, e ainda sem qualquer participação de Co Adriaanse, foi decidido que cada equipa será acompanhada na promoção ao escalão seguinte por um treinador, principal ou adjunto, para que seja garantida a devida continuidade. Para além do pessoal de campo, há um gabinete psicopedagógico, do qual fazem parte dois psicólgos e um profissional encarregado de acompanhar a vida escolar dos jogadores. Acrescente-se que também na área técnica se faz alguma formação: para além do célebre André Vilas-Boas, adjunto de Mourinho, saíram do FC Porto o adjunto de Carvalhal, Zé Miguel ou Bruno Moura, adjunto de António Sousa .